O GOVERNO, O CONGRESSO E O POVO: A LUTA DE CLASSES NOS PALÁCIOS DO PODER
O tema do IOF despertou novamente o conflito distributivo e explicitou os interesses que movem o Congresso. Lula partirá para a ofensiva?

Somando tudo, o que queremos dizer é que Lula 3 parece estar embaraçado numa espécie de versão modificada de “síndrome de Estocolmo”: não é que se identifica com o algoz, mas de qualquer forma corre atrás de um parceiro impossível (a banca), que já confessou, sem a menor sombra de dúvida, que não lhe quer bem; que fará todo o possível para atrapalhar sua reeleição em 2026; e que, enfim, só aceita um acordo no qual ele mesmo “entra com o pé” e o outro “com o traseiro”.
Cícero Araújo - A derrota de Kamala Harris e o risco de descarrilhamento de Lula 3.
Nos últimos dias, a batalha em torno do IOF (Imposto sobre Operações Financeiras) tem tomado as redes e os noticiários do país, depois que o Congresso Nacional aprovou, na terça-feira, dia 2, a derrubada do decreto presidencial que aumentava as alíquotas do imposto. A Medida Provisória emplacada pelo governo representava mais um de seus esforços para diminuir privilégios dentro das quatro linhas do chamado “equilíbrio fiscal” - mantra da ortodoxia neoliberal que impede o governo de gastar (investir) mais do que arrecada.
Ao taxar determinadas operações financeiras, a equipe de Fernando Haddad aumentava sua pressão sobre “a cobertura do condomínio”, como o Ministro tem se referido aos super-ricos, beneficiários da estrutura tributária regressiva do país - que a proposta de isenção do IR para quem ganha até 5 mil reais também busca combater.
Mas o Congresso, para surpresa de ninguém, reagiu rápido para agradar aqueles que se convencionou chamar de “o pessoal da Faria Lima” - o 1% do país que vive de aplicações financeiras, especulação com títulos públicos, e outras formas de rentismo - mesmo que não produzam sequer um par de sapatos para o país.
A briga em torno dos juros foi a mesma querela, com Lula e Roberto Campos Neto (o Roberto Campos original era o ministro da economia nos primeiros anos da ditadura empresarial-militar) em posições antagônicas. A política de juros, que segue a mesma sob o comando de Galípolo, egresso da equipe de Haddad, sufocou as possibilidades de “desenvolvimento”, sob a alegação, como consta também no editorial da Folha de São Paulo de ontem, 3 de julho, que “a gastança desordenada estava gerando, mais uma vez, inflação”.
Claro, porque a desorganização das cadeias de valor depois de dois anos de pandemia global e três anos de uma guerra de grandes proporções na fronteira da Europa com a Rússia, agravamento de fenômenos climáticos extremos e as flutuações do dólar devido às incertezas no cenário global não eram motivos plausíveis; a culpa era dos programas sociais voltados para o dia a dia do povo brasileiro, geradores de “excesso de liquidez”.
Ambos os “confrontos” são resultado do conflito distributivo, ou seja, da decisão sobre a forma como a riqueza socialmente produzida no país seria distribuída, com a grande maioria dos deputados puxando a corda para o lado dos super-ricos. A mídia corporativa tem tratado como um conflito de poderes: de um lado o Legislativo, fortalecido pela farra do orçamento secreto e poder de decisão sobre o destino do dinheiro público, e de outro lado, o Poder Executivo, representado como “gastão”, irresponsável com as receitas do país. Thiago Amparo, em coluna para a própria Folha de São Paulo, também no dia 3, expressou a distorção:
No vale-tudo dos jornais —no qual o debate sobre taxação de super-ricos é traduzido como pauta anti-Congresso e de polarização social—, sabe-se mais sobre quem almoçou com quem e quem ignorou a ligação de quem e menos sobre os interesses privados que sustentam a pouca ou nula taxação de super-ricos no país e como esses interesses interseccionam com os de parlamentares dispostos a sacrificar a estabilidade fiscal.
Mas a situação do IOF parece ter finalmente trazido o governo para a necessidade de ir ao combate, não se submeter à chantagem e disputar a consciência da população para o que importa - a existência de projetos antagônicos para o país, hoje talvez mais evidente que em qualquer outro momento do mandato.
A disputa de 2026 se aproxima e o governo, até agora preso na conciliação com um congresso de escravocratas, passa a perceber que nesse ganha-ganha só perdeu, e não chegou perto da sonhada marca do governo Lula 3. O índice de aprovação se encontra em seu nível mais baixo, e os supostos “aliados” de direita na sua base votam junto com o bolsonarismo em projetos não só reacionários - como em torno da nova e desastrosa legislação de licenciamento ambiental, no apoio à Israel, entre outros - mas também em projetos fatais para o governo e sua tentativa de reeleição - como a anistia para golpistas e a pressão por cortes de gastos em programas sociais, receita crucial no boicote e consecutiva desaprovação de Lula.

Como disse Moyses Pinto em texto recente, tudo isso indica que “a Frente Ampla acabou”. Por mais que muitos já tivessem alertado sobre seus perigos e, inclusive, sobre as lições que o próprio PT deveria ter tirado em seus primeiros mandatos, ela teve um momento de justificativa. Ganhar as eleições, defender a legitimidade das instituições burguesas, voltar à normalidade palaciana, combater o golpismo bolsonarista através da via institucional e evitar uma regressão autoritária devastadora - por mais que se discorde, essa era a desculpa, e em partes, funcionou.
Mas há muito que o cenário mudou, e o bolsonarismo segue firme para as próximas eleições. Evitar o colapso da democracia liberal talvez fosse do interesse da classe dominante. Mas a “governabilidade”... Aí já são outros quinhentos, como se diz. Conversa de um Brasil em que não existia orçamento secreto; no máximo, de um primeiro ano de governo. Hoje a conversa é outra: o governo até agora não conseguiu implantar uma agenda popular e parece agora um pouco mais propenso a combater, a fazer o que muitos já diziam ser necessário: contar com a população, mobilizá-la, denunciar o Congresso como inimigo do povo, como disse Boulos essa semana, e pressioná-lo a passar reformas mínimas para o benefício da sociedade, e não dos super-ricos. A Frente Ampla não permite isso e, portanto, é suicídio. Como disse Moyses Pinto:
A Frente ampla foi necessária para frear o avanço conservador e fascista, mas não foi nada além disso. Hoje ela serve para impedir o governo Lula de adotar políticas progressistas, e o presidente contém a retórica que poderia dar um sentido mais amplo de luta política redistributiva em função da Frente Ampla.
Muitos já pressionavam o governo para esse caminho antes; e alguns poucos nunca deixaram de apostar na mobilização e na pressão popular como tática de governo, como o deputado Glauber Braga, inimigo nº1 do Orçamento Secreto e de Arthur Lira.
Os conflitos em torno do IOF, dos juros, dos cortes de gastos, do IR, da reforma tributária - todos foram e são expressões do conflito distributivo, no qual o Congresso tem lado muito bem demarcado. Os vídeos produzidos por Inteligência Artificial, parte da campanha pela “Taxação BBB: Bilionários, Bancos e Bets”, tocam exatamente nesse ponto, mostrando que talvez o governo esteja finalmente também adotando uma estratégia que mostre seu lado. A luta pelo fim da escala 6x1, que tem a aprovação de 70% da população e a reprovação de 70% do congresso, é mais uma expressão do conflito, desta vez no âmbito produtivo, e é necessário que o governo adote-a como prioridade urgente.

Está claro: a polarização está colocada. A disputa distributiva e a disputa produtiva são expressões de uma coisa apenas: a luta de classes, que assume formas e intensidades distintas a depender do momento histórico e da correlação de forças entre os grupos sociais que, inevitavelmente, têm interesses opostos.
Cabe ao governo sair de cima do muro e fazer o que o outro lado nunca deixou de fazer, mobilizar seu campo contra os inimigos. Mas para isso é necessário aderir à polarização e explicitá-la publicamente, coisa com a qual o outro lado tem muito a perder. Não à toa, atacam o governo como razão da “instabilidade institucional” mesmo que muitas vezes ele tenha agido com excessiva moderação.
A iniciativa do Plebiscito Popular é a ferramenta crucial dos movimentos sociais para essa batalha, e um presente para o governo. É necessário utilizá-la para ganhar apoio popular, aproveitando a chance de acabar com a desumana escala 6x1, taxar os super-ricos e assim, quem sabe, sonhar com a possibilidade de ter uma agenda popular no Brasil no futuro.

Muito bom, Lelis! Quando a esquerda se une em uma causa que atende a todos, fica mais fácil a mobilização. As pautas identitárias são muito importantes mas não deveriam ser o foco principal em momentos de polarização. Concorda?