1º de Maio: Haymarket, Vila Euclides e Escala 6x1
Tanto em sua origem, nos EUA, quanto hoje, no Brasil, o 1º de Maio coloca no centro a luta da classe trabalhadora para ser dona de seu próprio tempo

A consolidação de uma jornada de trabalho normal é resultado de uma luta de 400 anos entre capitalista e trabalhador.
Marx, O Capital, Livro I (p.343)
No dia de ontem, 01/05, milhares de trabalhadores saíram às ruas ao redor do mundo em razão da data internacional do Dia do Trabalhador. Com diferentes pesos e repercussões nos países a depender da conjuntura e do grau de organização dos trabalhadores em cada um, o 1º de Maio tradicionalmente relembra as lutas da classe ao longo da história, bem como dá espaço às reivindicações de direitos dos trabalhadores na quadra histórica em que se encontram.
Fazendo a ponte de classe, que ultrapassa as nações, e une lutas futuras e lutas passadas, o 1º de Maio serve como instrumento de reivindicação, e de memória aos trabalhadores do mundo. Por vezes, foi utilizado como instrumento de “celebração” e conciliação de classes por parte dos governos à serviço dos capitalistas, mas também representou (e representa) uma demonstração de força dos trabalhadores na luta pelos seus interesses.
Em suas origens, estão a luta pela redução da jornada de trabalho. No Brasil de 2025, o 1º de Maio também serviu de plataforma para essa reivindicação, com a luta pelo fim da Escala 6x1.
Chicago, 1886: Greve Geral e Massacre de Haymarket
As origens do 1º de Maio remontam ao ano de 1886, quase 140 anos atrás, quando milhares de trabalhadores entraram em greve e saíram às ruas no 1º de Maio em Chicago e outras cidades dos EUA, pela redução da jornada de trabalho. Os Estados Unidos viviam grandes problemas sociais devido à depressão econômica que havia abatido o país na década passada e, em paralelo, via um aumento na organização dos trabalhadores em sindicatos.
Em diversos lugares do mundo, a classe operária amargava o sofrimento dos longuíssimos períodos de trabalho e as terríveis condições nas fábricas. Nesse fim do século XIX, o funcionamento “normal” de uma fábrica após a 2ª Revolução Industrial nos países europeus e nos EUA contava por vezes com jornadas de 14h por dia, além do emprego de crianças e outras barbaridades.
A FOTLU, federação sindical norte-americana fundada em 1881 e uma das principais da época, havia definido em sua Convenção de 1884 que o dia 1º de Maio de 1886 seria o “prazo final” para o atendimento da reivindicação de redução da jornada para 8 horas por dia.
Atingida a data estabelecida pela Federação, no dia 1º de Maio de 1886 uma greve geral de magnitude inédita atingiu os Estados Unidos, com a adesão de mais de 300 mil operários e grandes marchas operárias nas maiores cidades do país. Estima-se, além dos grevistas, que mais de 80 mil tenham ido às ruas com a palavra de ordem “8h de trabalho! 8h de descanso! 8h para o que quisermos!”.
O movimento em Chicago teve grande influência dos anarquistas revolucionários alemães que emergiram dos contingentes germânicos de trabalhadores que haviam imigrado para os Estados Unidos. Jornais em alemão tinham grande circulação entre os operários, como o caso do Arbeiter Zeitung [Jornal do Trabalho], editado por August Spies. A conclamação à violência revolucionária era uma das características dos periódicos anarquistas da época, que reproduziam manuais de fabricação de bombas caseiras e outros artefatos químicos¹.
As atividades grevistas estavam programadas para ocorrer por diversos dias, mas logo no dia 3 foi alvo de dura repressão policial, que matou um trabalhador e deixou vários feridos.
Em reação à extrema brutalidade policial, lideranças do movimento grevista convocaram uma manifestação na Praça Haymarket, em Chicago. Após novos confrontos com a polícia, um manifestante (que nunca foi identificado) arremessou uma bomba contra o contingente policial na praça, deixando um soldado morto e iniciando o tiroteio. O conflito generalizado na Haymarket culminou na morte de 10 a 15 pessoas, entre civis e policiais.

A imprensa logo noticiou a tragédia com a marca do cinismo burguês e da histeria anticomunista, chamando o movimento grevista de uma “conspiração antiamericana”, etc., narrativa para a qual o grande número de operários alemães ajudava a construir.
Além das mortes e das dezenas de prisões e detenções naquele dia, 8 trabalhadores, a maioria de anarquistas, foram responsabilizados pelo atentado. Desses, 5 foram condenados à pena de morte: August Spies (o redator de Arbeiter Zeitung), Albert Parsons (editor do periódico The Alarm), Adolph Fischer, George Engel, Louis Lingg; e os outros três à prisão: Samuel Fielden, Michael Schwab, Oscar Neebe.
Os três condenados à prisão foram libertos em 1893, após 6 anos na cadeia. Anos antes, em 1887, Louis Lingg, condenado à morte, se suicidou, e os outros quatro foram enforcados pelo Estado, se tornando conhecidos como os mártires de Chicago.
Em 1889, três anos após o Massacre de Haymarket, no 1º Congresso da Segunda Internacional, o 1º de Maio foi estabelecido como Dia Internacional do Trabalhador, em memória dos mártires e lutadores do Chicago.
1º de Maio no Brasil: Brevíssimo panorama
No Brasil, a data de 1º de Maio foi adotada oficialmente em 1924, e teve marcada presença dos anarquistas (e também da repressão) durante a República Velha². Os sindicatos livres e a imprensa operária autônoma marcaram as mobilizações da classe na época, que tem a Greve Geral de 1917 como um dos maiores momentos do movimento operário.
O 1º de Maio se tornou fundamental para a propaganda do próprio Estado brasileiro durante a Era Vargas. Os comícios tinham um sentido simbólico especial no arranjo de conciliação de classes e controle sindical montado por Getúlio em seu projeto “modernizador”, centrado em sua figura enquanto “pai dos pobres”.
Durante a República de 45, momento de maior liberdade sindical até então (apesar da clandestinidade no Partido Comunista, tornado ilegal em apenas 2 anos de “democracia”) o 1º de Maio cresceu enquanto importante ferramenta de mobilização dos trabalhadores, em ascensão política e social no período.
Após o golpe e a instalação da ditadura empresarial-militar³, as organizações da classe trabalhadora foram duramente perseguidas e suas lideranças assassinadas, presas, exiladas ou colocadas na clandestinidade. A ditadura serviu ao objetivo das classes dominantes de frear as conquistas das massas trabalhadoras e as prometidas Reformas de Base, plataforma do governo trabalhista de João Goulart. Acabar com a democracia representativa e colocar representantes dos militares no controle dos sindicatos, os chamados pelegos, eram meios para esse controle das classes populares.
Sindicatos foram fechados e um sofisticado sistema de vigilância e repressão dos trabalhadores dentro e fora das fábricas foram montados pela aliança empresarial-militar, com a colaboração direta entre governo e grandes empresas para esse fim. O 1º de Maio, enquanto instrumento de contestação dos trabalhadores, diminuiu seu peso devido à forte repressão que mantinha a força de trabalho disciplinada ao regime de superexploração.

Em 1970, por exemplo, em ato do 1º de Maio no Estádio da Vila Maria Zélia, no bairro do Catumbi, em São Paulo, 18 militantes foram presos por agentes do Departamento de Ordem Política e Social, o Dops, e da Força Pública. O ato foi organizado “pelos Sindicatos dos Metalúrgicos, Bancários, Têxteis, Químicos, Marceneiros, Gráficos, Alfaiates, Laticínios, Padeiros e Condutores de Veículos. Havia 500 pessoas no estádio e entre 13h e 14h foram detidos 19 militantes”⁴ , segundo dados do IIEP - Intercâmbio, Informações, Estudos e Pesquisas.
Dentre os presos estava o militante Olavo Hanssen, que foi “submetido a dias seguidos de torturas: espancamentos, choques elétricos, paus-de-arara, queimaduras e afogamentos. 8 dias depois, destruído e com péssimo funcionamento dos rins devido às torturas, Olavo faleceu no Hospital Militar do II Exército, no Cambuci”.
Nos anos 80, com a retomada das ruas por parte do movimento operário, o 1º de Maio veio novamente ao centro da cena política brasileira. Entre outros, o ato do 1º de Maio de 1980 no ABC, um dos mais simbólicos momentos do ascenso grevista que vinha desde 78, marcou a história nacional. Os metalúrgicos estavam em greve e sua principal liderança, Luiz Inácio Lula da Silva, estava preso há mais de 10 dias. Mais de cem mil pessoas participaram do ato na Vila Euclides, reivindicando reajuste e piso salarial, e (como em Chicago) a redução da jornada de trabalho, para 40 horas semanais. Os metalúrgicos desafiavam a ditadura empresarial-militar e mostravam aos patrões e ao regime que já não seria mais possível sufocar a luta operária na base de prisões, assassinatos, torturas e demissões.

A onda de greves iniciada com os trabalhadores metalúrgicos na Grande São Paulo - na cidade, com a direção da Oposição Sindical Metalúrgica (OSM-SP), e no ABC, com o Sindicato dos Metalúrgicos - iriam transformar decisivamente a história do país, rompendo com os desejos da “abertura gradual e segura”, forçando a redemocratização e puxando a sociedade para um novo ciclo de lutas sociais e conquistas, algumas delas cristalizadas da Constituição de 1988.
2025: o retorno da luta por redução da jornada?
Já não estamos em 1886 em Chicago e tampouco em 1980 no ABC, mas em 2025 no Brasil como um todo. A luta pela redução da jornada de trabalho segue sendo a principal reivindicação dos trabalhadores no 1º de Maio.
O movimento pela revogação da chamada Escala 6x1 reposicionou novamente o tema na preocupação dos brasileiros e, mais que isso, deu uma oportunidade para a esquerda de reacender a discussão com milhões em torno do campo do trabalho.
Ganhando grande repercussão através da eleição de Rick Azevedo (PSOL) como vereador no Rio e subsequente mobilização por Érika Hilton (PSOL) e protocolização da PEC - que reduz para 36 horas a jornada semanal e proíbe a Escala 6x1 sem redução de salário - teve muito apoio. Segundo pesquisa realizada pelo Datafolha em dezembro de 2024, 64% dos brasileiros defendem a mudança.
Segundo avalia Igor Felippe, do portal Brasil de Fato:
“Depois da aprovação da lei da política de valorização permanente do salário mínimo, sancionada pela presidenta Dilma Rousseff em 2012, é a primeira vez que uma pauta com o caráter de conquista de direitos trabalhistas demonstra apelo popular e força na cena política.”⁵
A luta pela redução da jornada de trabalho é uma luta crucial da classe trabalhadora. É ela que vai colocar os limites, na vida do trabalhador, entre o tempo que lhe pertence e o tempo que lhe é roubado para a exploração. Marx em 1867, quando publicou o livro I d’O Capital, colocava a centralidade dessa reivindicação no conjunto da luta de classes, dedicando um longuíssimo capítulo à exposição e análise da busca do proletariado por definir esse contorno e limitá-la a parâmetros “normais”.
No capitalismo, o empresário compra do trabalhador a utilização de sua força de trabalho por determinado período de tempo, no qual serão feitas as mercadorias. A venda dessas mercadorias (mesmo que sejam serviços) realizará o valor de “investimento” (o custo da força de trabalho + o custo dos meios de produção) com o acréscimo da mais-valia, a parte correspondente ao trabalho não pago, conteúdo substancial do lucro burguês.
Por determinado período de tempo. Este, então, se coloca como o centro da disputa entre a classe burguesa e a classe trabalhadora, uma luta de classes. Como sofisticadamente disse Marx:
“Fechado o negócio, porém, descobre-se que ele [o trabalhador] não era ‘nenhum agente livre’, que o tempo de que livremente dispõe para vender sua força de trabalho é o tempo em que é forçado a vendê-la, que, na verdade, seu parasita não o deixará, ‘enquanto houver um músculo, um nervo, uma gota de sangue para explorar’. Para ‘se proteger’ contra a serpente de suas aflições, os trabalhadores têm de se unir e, como classe, forçar a aprovação de uma lei, uma barreira social intransponível que os impeça a si mesmos de, por meio de um contrato voluntário com o capital, vender a si e a suas famílias à morte e à escravidão”⁶.
O 1º de Maio serviu, historicamente, como palco que joga luz para essa questão. Ao contrário do que alguns dizem sobre um suposto “fim” da centralidade do conflito de classes e, mais especificamente, entre trabalhadores e empresários, a mobilização mostra como a disputa pelo tempo - a matéria básica e essencial do desenvolver da vida - segue como questão imprescindível.
A ideia de uma “Vida Além do Trabalho”, que dá nome ao movimento iniciado por Rick Azevedo em setembro de 2023 e em torno do qual se aglutinam as forças pelo fim da Escala 6x1, é um eco histórico daquilo que os mártires de Chicago também clamavam: mais tempo! - “para fazer o que quisermos!”. E, vale adicionar, o que precisarmos.
¹Lins Costa, Mariana. “Primeiro de maio”. Disponível em: https://aterraeredonda.com.br/primeiro-de-maio-2/
² TVTNews.“1º de Maio no Brasil: história de lutas, conquistas e resistência da classe trabalhadora”. Disponível em: https://tvtnews.com.br/1o-de-maio-no-brasil-historia-de-lutas-conquistas-e-resistencia-da-classe-trabalhadora/
³ A caracterização do regime que vigorou no Brasil entre 1964 e 1988 enquanto ditadura empresarial-militar não é consenso entre os historiadores, assim como “civil-militar” nunca foi. Ela é escolhida por sua pertinência à luz dass recentes investigações conduzidas pelo Centro de Antropologia e Arqueologia Forense da Unifesp sobre a responsabilidade das empresas cúmplices da ditadura. Hoje, já são mais de 14 ações no Ministério Público exigindo responsabilização das companhias colaboradoras do regime. Para saber mais sobre o projeto, acesse: https://www.unifesp.br/reitoria/caaf/projetos/empresas-e-ditadura.
Para saber mais sobre a caracterização escolhida, ver: Leal, Murilo. “Trabalhadores e Ditadura Empresarial-Militar no Brasil”. São Paulo: IIEP, 2024.
⁴ Disponível em:
⁵ Felippe, Igor. “A perversidade da escala 6x1”. Brasil de Fato. Disponível em: https://www.brasildefato.com.br/2024/11/12/a-perversidade-da-escala-6x1/
⁶ Marx, Karl. “O Capital: Crítica da Economia Política. Livro I: O processo de produção do capital”. São Paulo: Boitempo, 2013, p.373.