4 NOTAS SOBRE A MOLDURA DA GUERRA DE ISRAEL E ESTADOS UNIDOS CONTRA O IRÃ
Mesmo com um possível fim das agressões e o cessar-fogo, a guerra colocou em cena alguns elementos muito relevantes para a compreensão dos próximos conflitos no Oriente Médio
No início da noite (horário de Brasília) deste último sábado, 21, o presidente norte-americano Donald Trump anunciou a entrada oficial dos EUA na guerra entre Israel e o Irã com ataques a três usinas nucleares iranianas.
Os bombardeios vieram após 9 dias dos primeiros ataques ilegais de Israel à Teerã, e consequente pressão do primeiro-ministro Netanyahu para que os EUA colaborassem diretamente com o esforço israelense - uma vez que sozinha não teria capacidade para fazer o que alega ser seu objetivo: destruir todas as intenções iranianas de construir um programa nuclear soberano e independente.
Vale lembrar: Israel também alegou, como foi dito aqui na última semana, que tinha como objetivo “destruir o Hamas e resgatar todos os reféns”. E, tendo transformado o povo de Gaza em uma massa de famintos dentro um campo de concentração sob bombardeio e cerco ilegal, não conseguiu nenhum deles.
Ao longo dos dias após o conflito, centenas de mortes no lado iraniano, dezenas do lado israelense, além de sérios danos a ativos militares, infraestrutura energética e civil de ambos os países são visíveis e preocupantes. Embora as perdas iranianas sejam maiores, a sociedade israelense se vê hoje mais insegura do que em nenhum outro momento dos últimos 40 anos. Nem o Domo de Ferro e nem o lobby sionista conseguiram impedir que os mísseis iranianos provocassem danos significativos e visíveis em diferentes lugares do mundo.
Mesmo com as expectativas de “desescalada” do conflito, após a resposta de Trump às retaliações iranianas de baixa intensidade às bases americanas no Qatar e até o anúncio de um cessar-fogo negado pelos iranianos, parece para mim que o episódio botou às claras alguns aspectos que formam a moldura do atual conflito no Oriente Médio, que continuarão a ter repercussões importantes.
1. O bloco do ocidente capitalista, liderado pelos Estados Unidos da América, mantém desde ao menos o fim da primeira guerra mundial uma política de domínio e tutela do chamado “Oriente Médio” (noção fabricada pelo Ocidente) bem como de outras regiões do mundo, arrogando a si o direito de definir o destino de nações inteiras de acordo com seus próprios interesses e dobrar de joelhos aqueles que ousarem não obedecer. A estrutura do imperialismo norte-americano nunca saiu de cena e a situação iniciada a partir do 7 de outubro deixou isso mais evidente ainda.
O ataque dos EUA ao Irã foi mais um dessa longuíssima série de agressões imperialistas.

Ao lado dos britânicos, os EUA derrubaram o governo nacionalista democraticamente eleito de Mossadegh no Irã em 1953, colocando no seu lugar o regime ditatorial do Xá Reza Palehvi, cujas marcas essenciais foram o esbanjamento dos empresários ocidentais e aristocratas locais sobre os ombros dos trabalhadores iranianos, saqueando as riquezas petrolíferas nacionais e impondo uma brutal perseguição política com a polícia fascista Savak. O controle político sobre a sociedade iraniana posteriormente veio também com a imposição hierárquica dos costumes ocidentais, do que é sintoma, por exemplo, a proibição do uso de véu por mulheres nos anos 60 e o banimento do calendário islâmico e diversas outras medidas de censura religiosa nos anos 701.
A alta dos preços do petróleo, especialmente com a crise de 1973, fizeram com que o Irã passasse por transformações econômicas sem precedentes nesse período, sem que os ganhos fossem revertidos para os trabalhadores. Em 1973-74, o PIB cresceu 33,9% e em 1974-75, 41,6%, números completamente fora do normal - que não se traduziram em melhorias para a população. A rápida urbanização em razão do intenso êxodo rural e a falta de planejamento econômico para a população levaram a um altíssimo índice inflacionário com alugueis aumentando cerca de 300% em dois anos no início dos anos 70. As promessas do petróleo e a mudança na composição do campo pelas reformas do Xá ao longo dos anos 60, levaram à criação de uma massa imensa de novos trabalhadores em busca de emprego nas cidades, ocupando favelas e moradias precárias em um crescimento desordenado motivado pelos imensos lucros do petróleo.2
Em suma, o governo fantoche dos EUA era, a um só tempo, inimigo número um dos trabalhadores pobres e do Islã, mas melhor amigo dos americanos, dos britânicos e suas companhias petrolíferas, a despeito de suas reformas liberalizantes como o sufrágio universal. Não à toa, antes mesmo da queda do xá, guerrilheiros islâmicos já faziam atentados aos escritórios da El Al, Shell, British Petroleum e British Airways.

A Revolução em 1979 e a instalação do regime dos aiatolás iria transformar muitas coisas, mas decepcionando também muitas das esperanças emancipatórias dos populares ao instalar um regime teocrático altamente repressor.
Na história, contudo, um fato tinha ficado muito claro: que os EUA fariam de tudo para que o Irã não pudesse orientar seu desenvolvimento para seus próprios interesses, assim como com os demais países da região. A guerra civil com o Iraque nos anos 80 deu mais prova disso, quando os norte-americanos apoiaram a ofensiva de Saddam Hussein (posteriormente decapitado no bojo da invasão dos próprios americanos ao Iraque) contra o país de maioria persa.
Mesmo assim, o regime instalado pela revolução nem sempre colidiu com os EUA, como afirmou o experiente militante comunista e escritor paquistanês Tariq Ali em seu artigo recente, apontando por exemplo, o papel do Irã na divisão da resistência durante a invasão ao Iraque e os anos de “Guerra ao Terror”, lançado pelos EUA a partir dos ataques do 11 de setembro, em 2001.
No que se refere à questão nuclear, o Irã inclusive se submeteu às pressões dos países do Ocidente. Como relembra Tariq Ali, o Irã, já assinante do Tratado de Não Proliferação ao lado de outros 185 países - ao contrário de Israel - aceitou assinar o “Protocolo Adicional” em 2003, que negava o direito de enriquecer urânio, garantido pelo Tratado. O fato de não ter sido ratificado pelo parlamento e as críticas do Conselho de Segurança da ONU em 2006, após alegações da Agência Internacional de Energia Nuclear (IAEA, em inglês) de que o país não tinha sido capaz de reportar perfeitamente suas atividades, levaram o país a desaderir ao protocolo.
Mas em 2016, um novo acordo foi feito, e desde então o país está sob a contínua inspeção da IAEA, que garante que o Irã não está desenvolvendo armas nucleares. A própria Diretora de Inteligência Nacional dos EUA, nomeada por Trump, afirmou há menos de três meses: “A Comunidade de Inteligência continua a avaliar que o Irã não está produzindo armas nucleares e o Líder Supremo Khamenei não autorizou o programa de armas nucleares, suspenso em 2003”.
Os EUA de Trump mesmo assim iniciaram novas conversas com Teerã sobre seu programa nuclear em abril, mas pouco antes da 6ª rodada de negociações, os ataques de Tel Aviv vieram. Como disse Tariq Ali:
Os inspetores da IAEA sabiam muito bem que não existem armas nucleares [no Irã]. Eles estiveram simplesmente agindo como espiões voluntários para os EUA e Israel, fornecendo retratos dos cientistas experientes que agora foram mortos. O Irã percebeu tardiamente que era inútil deixá-los entrar no país e um projeto de lei parlamentar foi elaborado para expulsá-los. A liderança do país não tinha nada a ganhar sacrificando essa parte de sua soberania, mas eles se apegaram à fraca metade-esperança, metade-crença de que se fizessem o que os americanos queriam, poderiam conseguir o levantamento das sanções e uma paz garantida pelos EUA.
Um cessar-fogo sendo atingido nas próximas horas não muda esse fato nunca antes tão verdadeiro para os iranianos: o imperialismo norte-americano não está nem aí para os tratados, acordos e condições por eles mesmos impostos.
2. Israel goza de uma condição extremamente singular no planeta: não apenas pode desrespeitar todo o tipo de lei internacional sem consequências, como também tem assento de ouro na mesa de decisões do país mais rico do planeta

O ataque dos EUA reforçou o tamanho da influência de Israel na decisão da política externa norte-americana. Mesmo que o primeiro-ministro não estivesse lá nos seus melhores dias com Trump antes da guerra, ele foi capaz de arrastar os “melhores amigos de Israel” para dentro do conflito, diretamente. E Trump, mesmo com as críticas crescentes no seu próprio país, vindo não apenas da esquerda e da oposição democrata, mas de alguns dos próprios republicanos e dos principais representantes de seu movimento MAGA (Make America Great Again), tomou muito pouco tempo para contrariar seus próprios pilares da campanha: menos guerras no exterior, America First.
Esse fato só aponta novamente a força absurda do lobby pró-Israel dentro do sistema político norte-americano, do qual o AIPAC - American Israel Public Affair Comitee - é o principal representante. Ele possui gigante influência na decisão de políticos e outras autoridades americanas e conta com políticos de ambos os partidos ligados em todos os estados da federação, além de ser o principal patrocinador de atividades para a comunidade judaica norte-americana, advindo dele, por exemplo, muito do dinheiro para financiar viagens de jovens americanos à Israel, etc. Segundo a ONG Open Secrets, as contribuições para o AIPAC no ano de 2024 chegaram a mais de 50 milhões de dólares, a 18ª maior entre as mais de 40 mil organizações listadas pela ONG que fizeram doações a candidatos nas eleições de 2024.
A importância do AIPAC fez com que a própria Al Jazeera não publicasse uma série documental feita sobre a organização no ano de 2017 através de um repórter infiltrado, depois que representantes sionistas viajaram ao Qatar para pedir a censura do material, tendo descoberto a verdadeira identidade do repórter. O documentário, posteriormente, foi vazado pela revista digital Eletronic Intifada e publicado com legendas em português pelo The Intercept em 2021. Segundo o portal, nessa viagem de emissários pró-Israel à Doha constavam Alan Dershowitz, renomado advogado americano (que veio a defender, inclusive, o próprio Trump) e o falecido investidor pedófilo Jeffrey Epstein (que, curiosamente, também foi cliente de Dershowitz). O AIPAC também é abordado de forma elucidativa no documentário Israelism, sobre a relação dos judeus norte-americanos com Israel.
De toda forma, a força do lobby pró-Israel não abarca o problema das relações do país com os EUA. Israel, ela mesma, se tornou um dos principais instrumentos dos países ricos ocidentais para assegurar a presença e o interesse destes no “Oriente Médio”.
O assédio absurdo ao Irã enquanto “ameaça nuclear mundial” é tema da política americana há muito tempo; não é só Netanyahu que há décadas faz soar esse sino. Embora, contudo, ele tenha aproveitado o momento para pressionar seus amigos, como apontam Sérgio Lírio e Arturo Hartman:
Passados 16 anos da entrevista-ameaça [em que instava o recém eleito Obama a impedir o governo iraniano de desenvolver armas nucleares], Netanyahu vislumbrou finalmente as condições para colocar seu projeto em prática. O enfraquecimento dos organismos multilaterais, o fortalecimento do extremismo de direita ao redor do planeta, a frouxidão dos países ocidentais com alguma capacidade de intervenção no cenário internacional, e a volta à Casa Branca de Trump [...] criaram um ambiente propício para a incursão militar.
3. O cenário global maior no qual se desenrolam os principais conflitos internacionais é marcado pela diminuição relativa da influência norte-americana e o horizonte da China como maior economia do mundo
As últimas décadas marcaram o ascenso da China enquanto grande potência global, capaz de rivalizar com os Estados Unidos enquanto parceira econômica preferencial dos demais países do mundo, muito ligado ao seu papel nas indústrias de bens de alto valor agregado e em empresas de alta tecnologia, como os casos recentes das chinesas Huawei e Deepseek vieram reforçar.
As repercussões dessa transformação na economia e na política norte-americanas são imensas e, como é bastante sabido, estão na origem da própria eleição de Donald Trump, que parece querer retomar o papel dos EUA enquanto maior pólo industrial do planeta. Pode-se dizer que a política do “tarifaço”, com a qual iniciou seu segundo mandato e que supostamente responde à esse problema, dava indicações de que, desta vez, subiria o tom das ameaças aos demais países, como se a ameaça, ela mesma, fosse uma estratégia para evitar o distanciamento de países da órbita norte-americana, como o fortalecimento dos BRICs, dentre outros fatores, tem apontado. Chantagear para negociar.
A atual ação contra o Irã também se desenrola nesse contexto. E, como é sabido, o país de maioria persa possui como aliados tanto a China quanto a Rússia, os principais inimigos de Washington na disputa de hegemonia.
Para o analista Michael Hudson, o ataque do dia 21 está baseado no mesmo raciocínio neoconservador que orientou a ação do tarifaço, assentado na esperança norte-americana em retomar o mundo unipolar. Segundo esse raciocínio, derrubar o regime do Irã seria não somente fundamental para um controle mais efetivo das reservas de petróleo e dólares da região, mas também essencial para atrapalhar a Iniciativa da Rota e do Cinturão (BRI) da China, na qual o Irã tem um papel fundamental. Um acordo firmado entre os países em 2020 compromete a China a um investimento de 400 bilhões de dólares em infraestrutura iraniana em troca de descontos na compra de petróleo bruto, como apontou Bruno Huberman em sua coluna do último domingo.
Como diz Hudson:
Para os neoconservadores, tudo isso faz do Irã um pivô central no qual o interesse nacional dos EUA é baseado - se você definir “interesse nacional” como criar um império coercitivo de Estados clientes obedientes à hegemonia do dolar ao aderirem ao dolarizado sistema financeiro internacional.
Mas, além de uma estratégia pouco adequada aos fins desejados…
4. Derrotar o Irã é muito difícil
Como apontaram tanto Huberman quanto Hudson, uma derrota ou submissão do Irã por essa via é algo extremamente improvável.
Ao contrário do que parece ter sido suposto em algum momento por Trump, os ataques não fazem aumentar a impopularidade do governo, mas sim a unidade de setores oposicionistas em torno da defesa nacional, como mostram as recentes manifestações em Teerã.

Os danos causados à Tel Aviv não são desprezíveis e, contra uma imaginada ofensiva americana, existem cartas à disposição dos iranianos em relação às quais os EUA também teria muito perder, desde o fechamento do Estreito de Ormuz, por onde passa cerca de 20% do comércio global de petróleo, até a entrada de novos atores em cena, como os Houthis do Iêmen, o Paquistão (dono de armas nucleares), a Rússia e a China propriamente dita - fato que fez muitos temerem os riscos de um conflito sistêmico imprevisível.
Para Hudson, o comportamento de Trump teria mostrado que, após um apoio irresponsável ao chamado de Netanyahu, ele ouviu seus conselheiros militares a esse respeito. Chamando o ataque de “vitória incontestável” mas evitando se envolver mais, ele teria mantido a seus apoiadores a narrativa de salvador da ameaça nuclear, enquanto decepcionava os neoconservadores sobre uma ofensiva mais agressiva contra os iranianos, ao mesmo tempo evitando problemas maiores para os Estados Unidos.
É necessário ver o que irá acontecer. Mesmo muito afetada pelos ataques iranianos, Israel, com sua sanha expansionista, pode vir a colocar o bilionário na berlinda novamente.
COGGIOLA, Osvaldo. A Revolução Iraniana. Editora Unesp: São Paulo, 2007.
Idem, ibidem.